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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A mala e a espera (EC)




A mala e a espera (EC)


Ainda recorda o estampir da porta batendo, meio que socada, um susto breve, um ruído a azucrinar cada dia. Era a saída de Marçal, prometida de volta, sim, de volta.Depois que as Águas de abril baixassem e a lavoura pudesse ser retomada, o replantar da mandioca. Depois que se fossem as chuvas e a época do Açaí bom chegasse, atravessaria muitas sacas para a feira, ai ele voltaria.
Ah, voltaria sim, quando aquela leva de Malária se abrandasse, a febre e tremor se fosse, e chegasse à hora de pegar mais remédios lá na cidade, ai ele voltaria. O tempo dos Carapanãs é cíclico, o homem da Sucam viria de barco colocar DDT, depois, então ele voltaria.
Chegaria o tempo de chegar, o afastamento seria de volta também, ou então de temporada, de tempo como é o tempo das mangas, que caem sem trégua nos carros estacionados ou mesmo em movimento nas ruas de Belém, ou como o tempo das chuvas que andam mudando de hora. Seria assim, o tempo do regresso, como o tempo das águas enormes que alagam a Belém Antiga, transbordam o Ver- o- Peso, um tempo de muitas e revoltas águas.
O Marçal HAVERA de voltar, junto como os romeiros, para o Círio de Nazaré, trazendo patos, e outras iguarias para o almoço tradicional de domingo, e juntos acompanhariam a Santa na corda, agradecendo as boas safras, o reencontro. Agradecidos. Juntos. Como sempre fora.
Do Natal não passaria, de jeito nenhum. As crianças esperavam ansiosas pelos brinquedos comprados na Importadora, e gostavam de ver o Papai Noel chegar de helicóptero no Mangueirão, ou de barco mesmo, tanto fazia, o Noel vindo e ele voltando era o que bastava. Bastaria.
Ah, ela tinha sim esperanças, afinal era devota de Nossa Senhora de Fátima e ela nunca a abandonava, nunca, até quando o menorzinho teve aquela suspeita de Doença de Chagas, naquele tempo que o Açaí “disque tava” contaminado e também quando a do meio teve Leishmaniose e tudo foi curado pela virgem. Graças, por isso ela não perderia as esperanças. Não mesmo. Mulher de fé era assim.
O parto do terceiro, lá na floresta, foi difícil e então se pegou com a Santa e a parteira, que chegou no lombo do cavalo, inda teve tempo de puchar a barriga e pegar a criança que tava emborcada. Sem contar a mais esmirradinha a segunda menina, ah essa nasceu no barco e foi Marçal quem pegou. Tudo com a graça de Deus. Que nunca falta, e não faltaria. Seria mesmo num janeiro, ou outubro, isso era apenas a marca do tempo na velha folhinha pregada na parede. Se mudasse de ano, teria uma nova, vinda lá da loja bacana da cidade. O tempo não deixaria de ser marcado, dia após dia com lápis das criança ou com uma fagulha de carvão do velho fogão de pedra. Não importava. O bom mesmo era no fim da noite, depois da novela assistida graças à parabólica que Marçal orgulhoso comprou, e depois que a molecada toda já estava nas suas redes, se aquietando, Maria de Fátima ia lá para a beira da varandinha de madeira que dava de frente para o rio, atava a sua redinha com mosquiteiro e ficava lá matutando... e o pensamento não desgrudava da feição de Marçal, da pele morena rachada de sol, dos braços fortes traçados pela dureza da vida, da mão áspera pelos seus longos cabelos negros e que ao pegar lhe a costa a fazia flutuar... tudo seria possível sim, quando ele chegasse.
Em muito, muito o calendário antigo amarelou, outro veio, e mais um, mais outro. E mais um dia, e menos um esperar. E mais um danar de faltar. E mais escondido das crianças chorar. O tempo, o senhor das horas se fez presente, e não se fez de rogado. Relutante, Maria arrumou uma pequena mala a qual nem sabia para que, atinou de reunir os pertences de Marçal, assim achava que retirando da casa aquelas visões, retiraria um pouco o que no peito a dilacerava. Cada pertence juntado mereceu uma lágrima, era como um lacre imposto pela solidão da falta. Da falta de tudo, do seu moreno, do cheiro do cigarro de palha a boca da noite. Da falta de uma simples e qualquer explicação.
A mala ali estava pronta. Num canto junto às saudades...
Mas a mais significativa, que ficara pronta o tempo todo e lá se iam muitas folhinhas riscadas, era a mala dos sonhos, na qual depositara todas as expectativas, esperanças e fé de que ele voltaria sim. Ele voltaria.
Haveria de voltar.
Voltaria.





Elucidário:

Malária - Doença infecciosa, endêmica em várias regiões, muito comum no Norte do país.

Carapanã - Denominação de mosquito/pernilongo na região Norte.

DDT - Pesticida usado no combate a Malária.

SUCAM - A Sucam foi incorporada em 1990 à Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Era chamada de “o Exército de mata mosquitos”.


Belém Antiga - Bairro chamado Cidade Velha, onde estão as antigas construções da riquíssima época da borracha, e belos prédios com a assinatura de Antônio José Landi, arquiteto italiano com marcante atuação na Amazônia.



Romeiros - Como chamam as pessoas que chegam dos interiores de todo o Pará para “Passar o Círio”.


Corda - Corda do Círio, tradição antiga onde se acumulam pessoas num esforço sobre humano sempre na intenção de pagar uma promessa. Um dos ícones do Círio de Nazaré.


Mangueirão - O Estádio de Futebol mais famoso de Belém, hoje um Complexo Poli-esportivo, com pista Olímpica Oficial para Atletismo, rebatizado como Estádio Olímpico do Pará.

Disque - Expressão popular que significa algo como “dizem por ai”. Nada que se afirme.




Puxar a barriga - Uma tradição entre as parteiras, que intenciona “colocar o bebê na posição ideal para o parto”.



Rede - A rede de descanso (ou rede de dormir) é um utensílio doméstico de origem indígena, que originalmente era feita com cipó e lianas. Chamadas de hamaka. Consiste numa espécie de tecido com alças. Durante o Brasil colônia era muito utilizada para dormir, enterrar os mortos no meio rural e como meio de transporte, onde os escravos carregavam os colonos em passeios pela cidade e até em viagens.


Mosquiteiro – Cortinado de fino tecido usado para proteger dos mosquitos, complemento da rede.


Havera – usada apenas verbalmente, sem registro oficial, significa uma afirmação popular cujo sentido é a certeza. Pode em alguns textos ser substituindo por “Existir ou haver”.





Este texto faz parte do Exercício Criativo - De Malas Prontas.
Saiba mais, conheça os outros textos: http://encantodasletras.50webs.com/malas.htm

Um comentário:

Jorge Sader Filho disse...

Uma escrita que nos leva ao Brasil desconhecido, seu povo do Norte, costumes, tradições. Encantou, Rose!

Beijos.

Dezembro vindo.....

Daisypath Anniversary tickers
Monarch Butterfly 2

Escrevo para.........

Quando escrevo exorcizo fantasmas, é meio abstração e também minha realidade se despindo.Sou eu me confessando a mi mesma.

Um Poetrix ...verdinho......


Escrevo para....

Escrevo para por no mundo pequenas ânsias, escrevo para aportar desejos aflitos, escrevo para me salvar, é como Jogar as âncoras, o barco ora vai ao sabor das ondas, ora é a deriva....
Escrevo para acariciar as suas almas,e ser tocada por seus olhos impressos de brilho!
escrevo para Gozar,Flutuar, ser e merecer, Escrevo para seus delírios, seu deliciar!
Escrevo para vocês,
Agradeço seus olhos em mim, na minha ruptura poética!
Escrevo!

Muito grata por me sorverem as letras!
A todos que aqui passarem seus olhos, mentes e corações!
Rose

Sobrepondo Sonhos.....